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Gestão urbana popular do medo e da violência

Nessa entrevista pingue-pongue, o antropólogo comenta a relação da cidade com as temáticas de medo e violência – da periferia ao grande centro, abordando através das especificidades as consequências e desdobramentos desses fatores até sua percepção ao cenário político atual.


Por Carolina Ghilardi

José Guilherme Cantor Magnani teve uma longa trajetória de formação. Cursou Ciências Sociais pela UFPR, no ano de instauração da Ditadura no país, 1964. Conseguiu terminar a graduação, mas optou por sair do Brasil após ser condenado pela lei de segurança nacional, em razão de militância no movimento estudantil. Foi para o Chile, onde iniciou os estudos em sociologia na pós graduação pela Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (FLACSO). Presenciou o golpe militar no Chile, e teve que se mudar para a Argentina, onde atuou como pesquisador na FLACSO. Voltou para o Brasil e ingressou na Pós Graduação em Ciências Humanas da USP, onde hoje é Professor Titular do Departamento de Antropologia, do Programa de Pós-graduação em Antropologia Social e coordenador do Núcleo de Antropologia Urbana.

Magnani enxergou São Paulo como um grande laboratório de práticas culturais, sociabilidade e trocas simbólicas – estendendo às cidades de forma geral. Com ênfase em pesquisar etnografia, cidade, sociabilidade, lazer e religiosidade, busca compreender cidade e periferia, a partir dos vários grupos ali instalados, as modificações dessas presenças na dinâmica urbana e o estabelecimento de vínculos e alianças nesse sistema complexo.

Nessa entrevista pingue-pongue, o antropólogo comenta a relação da cidade com as temáticas de medo e violência – da periferia ao grande centro, abordando atráves das especificidades as consequências e desdobramentos desses fatores até sua percepção ao cenário político atual.

Você observou algumas comunidades pelo Núcleo de Antropologia da USP e em outros projetos, como o medo afeta essas comunidades de uma forma mais intensa?

José Magnani – O medo afeta essas comunidades no sentido delas se fecharem em si mesmas. A ideia de uma comunidade na Antropologia, é justamente a prática de entrar em contato com as comunidades, participar da vida dos membros e assim o antropólogo perceber como se dão as relações de parentesco, de trabalho e de convivência. No caso do ambiente urbano, há essa relação interna dos membros, mas o medo faz com que as comunidades se fechem para um quadro muito mais amplo ao qual elas estão inseridas, o quadro da cultura urbana. Esse “se fechar” significa uma perda de experiências mais alargadas, um problema grave para a comunidade porque ela fica somente em seus membros.

Com base nas suas pesquisas, quais são os principais fatores que desenvolvem a violência urbana?

Magnani – Não dá para falar de uma maneira geral de violência porque ela é qualificada. A violência policial contra as pessoas de periferia, é um tipo. A violência simbólica, é outro tipo. A violência não é geral, ela é tipificada de acordo com as várias formas que se manifesta, e as formas que ela aparece são dadas em função da perspectiva de achar que o meu modo de vida é correto e o do outro é errado. A diferença do jeito, da escolaridade, do trabalho, a precariedade e muitas vezes a diferença de classe sociais e de ingresso, faz com que haja de certa maneira uma diversidade tão grande de acesso aos recursos que termina sendo um dos fatores para o exercício da violência.

Quais consequências o medo traz para a cidade?

Magnani – A consequência que o medo traz é a cidade não oferecer condições de convívio. Existem praças, espaços públicos, ruas, mas se as pessoas tem medo de ir para a rua e acabam perdendo exatamente a coisa mais importante que a cidade tem a oferecer – o encontro com o desconhecido no espaço público. A ideia da rua no espaço público é fundamental para a cidade, porque é o espaço do encontro, e se existe essa cultura do medo e da violência, aos poucos o espaço público se torna privatizado e as pessoas se fecham no espaço doméstico, no espaço da sua escola, da sua igreja.

Quais as consequências da privatização do espaço?

Magnani – As pessoas ficam individualistas, ao invés delas entrarem em contato com o que é oferecido pelo conjunto da sociedade elas se fecham cada vez mais em si mesmas ou no interior da família, dos pequenos grupos e deixam de crescer pela incorporação de modos de vidas diferentes.

Como o medo se torna uma espécie de fascismo no sentido de inibir as pessoas dentro de suas casas?  

Magnani – O medo pode ser um impedimento para a relação de sociabilidade, que é algo muito importante. As pessoas precisam se encontrar para fazer trocas e a cidade é justamente o lugar onde elas podem fazer as trocas de suas experiências. O medo é uma barreira para ficar só com os conhecidos, e o importante na cidade é entrar em contato com o diferente, com aquele que pode trazer uma contribuição nova, seja do ponto de vista de uma mercadoria, de um bem simbólico, de uma experiência, de um contato e até de um relacionamento pessoal.

Algumas pesquisas mostram que o medo dos americanos é uma projeção de não conseguir quitar as dívidas, arcar com seus compromissos. E o do Brasil, o medo que sentimos hoje pode ser projeção do quê?

Magnani – Não dá para falar do Brasil em geral, é um país muito amplo, tem regiões muito diferentes, uma coisa é estudar uma cidade como São Paulo, que tem 12 milhões de habitantes e outra é estudar cidades médias da calha do Rio Solimões, na Amazônia, que são pequenas comunidades. Mas se você pegar uma metrópole, a ideia do medo acaba afetando a vida das pessoas em função das múltiplas possibilidades de escolha. Às vezes as escolhas são tão grandes que as pessoas ficam indecisas e paradas. A ideia de um referencial que elas não conhecem gera insegurança. Sempre fazer trocas com pessoas com as quais se tem conhecimento, dentro do seu “pedaço” dá uma certa segurança, mas encontrar com o diferente, seja em um condomínio, ou saindo do seu “pedaço” em uma cidade hostil, as pessoas tendem a se fechar.

Você constatou algum inibidor de violência?

Magnani – O inibidor, em uma maneira de evitar a violência é estabelecer e ampliar as relações pessoais. As pessoas tem que fazer um esforço para sair e cumprimentar, perguntar, oferecer uma ajuda, isso vai quebrando o gelo, e a diferença que as pessoas têm umas das outras. A diferença de língua, de raça, classe faz parte de uma sociedade complexa, mas para romper isso é preciso ter uma iniciativa, e isso se faz experimentando o contato com o outro.  Em uma escola, seja particular ou pública, por exemplo, as crianças entrando em contato entre si, com estilos diferentes, vão aprendendo com o tempo a incorporar e a valorizar a diferença e não a semelhança. Se eu me relaciono só com as mesmas pessoas eu não aprendo. O inibidor da violência é se abrir para o diferente.

Como a mídia pode se manifestar e perdurar tanto o medo quanto a violência urbana?

Magnani – A mídia tem aquela história, uma brincadeira dos jornalistas, “se o cachorro morde o homem não é notícia, mas se o homem morde o cachorro, é notícia”, quanto mais estranho, exótico, mais radical for o fato, a mídia tende a dar uma visibilidade maior, e às vezes é um fato isolado. Esse estigma da violência na periferia por exemplo, é muitas vezes estimulado pela vontade e tornar público o fato inusitado, mas que não é comum. Essa cultura de externar a violência como se ela fosse comum o tempo todo, é uma prática que pode ser revertida, e por isso há uma certa responsabilidade da mídia ao perpetuar o medo e a violência.

Como você entende esse fenômeno de isolamento em condomínios fechados, em muros altos e grades?

Magnani – Isso é uma das tendências, as pessoas que tem um modo de vida marcado só pela presença dos iguais tendem a se fechar. Já as pessoas mais abertas, que percebem que a cidade tem algo a oferecer para elas, saem do seu condomínio. A publicidade de novos prédios diz “lazer total”, onde você não precisa nem sair do condomínio para fazer academia, ter suas relações interpessoais, o seu trabalho, o seu café, está tudo ali dentro. A ideia do condomínio, da casa e da vizinhança, na verdade, é vender um lugar da convivência com os iguais.

Falando um pouco sobre políticas públicas, você acredita que existe alguma que tem obtido bons resultados para combater tanto o medo quanto a violência urbana?

Magnani – Há muitas políticas públicas e políticas desenvolvidas por organizações não governamentais. Uma, por exemplo, é a implantação de centros de cultura na periferia, em São Paulo, chama CEUS, Centro Educacionais Unificados, são espaços de ensino público na periferia muito bem aparelhados, no sentido de oferecer ensino, oferecer cultura, lazer, festas e afins. Políticas públicas que disseminem quadras de esporte pela periferia, também são medidas que ampliam o espaço público, o espaço físico para que as pessoas possam ir em segurança exercer o seu exercício físico e o seu encontro com os outros. Essas são possibilidade e ademais, os encarregados do serviço público, que é a corporação policial, deve ser treinada para imediatamente não considerar o outro como um inimigo, mas como alguém passível de um encontro e trocas.

O que ainda pode ser feito tanto por instituições não governamentais como por governamentais?

Magnani  – Ampliar esse quadro, além de oferecer espaços públicos de convivência, a ideia de melhorar o serviço público de saúde, por exemplo. Quando se fala em violência a gente sempre pensa na periferia. Achamos que lá é o lugar da violência, mas existem áreas como o centro e outros fatores que também interferem no relacionamento com a cidade. Sabemos, por exemplo, que a ideia de uma cidade limpa oferece para o cidadão a possibilidade dele contribuir, mas se a cidade não está cuidada, se os prédios estão abandonados, e se não existe a possibilidade de uma convivência, é um estímulo para que as pessoas não cuidem da própria cidade, e não cuidar da cidade é um estímulo de decadência e precariedade, porque em uma cidade hostil as pessoas tendem a se fechar.

Como você enxerga o momento político atual do brasil? Existem muitas pessoas com medo do novo presidente, existem muitas pessoas com medo das medidas que eles podem tomar em diversas áreas?

Magnani  – As posturas do presidente, ainda como candidato, abriu espaço para a violência. Muitas pessoas estão aproveitando esse discurso da violência para praticá-la. Agora mesmo em São Paulo vemos pela mídia violência na universidade, a violência contra as minorias e acredito que há um clima que está sendo aproveitado por pessoas que antes não se sentiam legitimadas para expressar as suas diferenças, mas que agora estão dando vazão a algo que estava de certa maneira reprimido, expressando a homofobia, racismo, preconceito contra movimento sociais, feministas e de gênero. É importante lembrar que todos esses direitos são conquistas da sociedade civil, que devem ser mantidos porque é uma das formas de impedir a violência. Para a antropologia a ideia é entrar em contato com a diferença e respeitar a diferença do outro é fundamental, se trata de dizer que existe a convivência política e as diferenças, mas isso não implica que eu deva impor o meu modo de vida e ponto de vista, tanto de um lado como do outro.


* Esta entrevista faz parte de um projeto maior - a Revista Mercúrio, idealizado pelos alunos de jornalismo para a disciplina de Produção Gráfica e Editorial. Para conferir a revista online na íntegra basta acessar aqui.*

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